sexta-feira, 11 de abril de 2014
Superávit primário e as consequências sociais do endividamento

Para Ivo Poletto, a preocupação exacerbada com o pagamento da dívida em nome de uma dita “governabilidade”sacrifica recursos de pautas sociais em uma lógica interminável de juros sobre juros
Do IHU

De acordo com o Sistema Integradode Administração Financeira (Siafi), 42%do orçamento geral da União para 2014 está comprometido com o pagamento de juros e amortizações da dívida pública. Com uma quantia tão representativa, ao país parece restar, como única forma deexercer a governabilidade, o remanejamento de verbas públicas e a contratação de novos empréstimos para saldar o endividamento e restabelecer o crédito. No entanto, como bem lembra o filósofo IvoPoletto, quando os custos de dívida pública, externa e interna, comprometem tanto o orçamento público, “quais áreas sociais e ambientais não são atingidas com redução de recursos?”.

Informações da Agência Estado, em matéria publicada em23/03/2014, mostram que cerca de 20% dos R$ 75 bilhões apresentados pelo governo central como superávit vieram do represamento de recursos carimbados para projetos educacionais, culturais e tecnológicos. “Os recursos destinados à manutenção da credibilidade de país devedor, ‘obrigatórios e indiscutíveis’, segundo a visão e a prática do Executivo e do Congresso, afetam todos os setores da vida da população brasileira”, ressalta Poletto.

Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Poletto comenta experiências positivas latino-americanas para a recompra de títulos da dívida, critica a postura do Brasil ao manter ainda hoje praticamente todas as políticas que o FMI impunha através das relações de endividamento e destaca a importância da criação de uma Auditoria Pública da dívida— conforme determina a Constituição Federal de 1988.

“Nenhuma instituição pública cumpriu com o seu dever em relação ao endividamento público”, defende.“O endividamento brasileiro tem sua origem e é mantido por decisões e políticas que não têm, como mínimo, legitimidade”, afirma.


Com a reserva de recursos do superávit primário e a priorização do pagamento da dívida pública, quais tipos de investimentos em pautas sociais o Brasil deixa de realizar?

Na verdade, quando os custos de dívida pública, externa e interna, comprometem mais de 40% do orçamento, quais áreas sociais e ambientais não são atingidas com redução de recursos? Por outro lado, senão for por incompetência dos ministérios, a realidade vivida pela população e os dados deixam claro que as políticas públicas de saúde e educação são as que mais se ressentem. Mas se olharmos o que está sendo destinado para reforma agrária, para transporte urbano, para serviços de saneamento, para a cultura, os recursos destinados à manutenção da credibilidade de país devedor, “obrigatórios e indiscutíveis”, segundo a visão e a prática do Executivo e do Congresso, afetam todos os setores da vida da população brasileira. Vale ter presente, por exemplo, que, sem o confisco dos 20% para o superávit primário, a Previdência seja superavitária, como demonstram estudos especializados, e não se justificaria a manutenção dos mecanismos que reduzem as aposentadorias, sacrificam os aposentados e impedem a universalização deste direito constitucional.

Que ações estatais são aceitáveis para cumprir com o pagamento da dívida?

Todas as atuais ações estatais são inaceitáveis, porque executadas sem o cumprimento do mandato da Constituição Federal de 1988, que determinou que deveria ser feita uma Auditoria Pública da Dívida. Nem o Congresso, que na ocasião se autoproclamou “constituinte”, nem os governos, especialmente os comandados por partidos que têm em seu programa o compromisso de exigir o cumprimento da Constituição, nem o Judiciário, a quem cabe zelar pelo exato cumprimento da Constituição e por todos os direitos de todas os cidadãos e cidadãs — nenhuma instituição pública cumpriu com o seu dever em relação ao endividamento público. Por isso, a ação estatal aceitável é a realização de uma Auditoria Pública da Dívida, com poderes para determinar se e quanto o país realmente deve aos eventuais credores externos e internos; com poder para identificar ilegalidades e imoralidades seja, na origem de cada endividamento, seja nas negociações posteriores, seja na prática de taxas abusivas de juros,  seja na identificação de corrupções e autoritarismos ditatoriais.

Em 2007, o presidente do Equador, Rafael Correa ,ofereceu até 30% do valor para recomprar os títulos da dívida pública. Contra vários prognósticos, 95% dos credores aceitaram, levando a uma queda de quase 70% a dívida do país, permitindo investimentos em saúde, educação etc. Acredita que estratégia semelhante poderia ser realizada no Brasil?

Antes do Equador, a Argentina propôs aos bancos a retomada do pagamento dos custos de sua dívida externa com um deságio de 75%, isto é, pagando apenas 25 centavos de cada dólar. Mais de 80% dos “credores” aceitaram, e o fizeram por conhecerem a condenação da dívida argentina pela Justiça, num processo que teve Alexandro Olmos como autor, com duração de 20 anos, e que resultou no veredito que condenou a dívida externa estatal como um crime contra a cidadania do país. A prática do governo do Equador indica duas coisas que humilham nosso país: como Rafael Correa, Lula , em primeiro lugar — para não cobrar de Fernando Henrique Cardoso algo impossível depois de seus compromissos explícitos com o chamado Consenso de Washington—, e Dilma tinham o poder para instituir a Auditoria Pública da Dívida, mas preferiram manter os interesses dospoderosos “credores” por medo de interferências na governabilidade; medo que o Equador mostrou não ter fundamento na realidade. Com isso, o Brasil se mantém como um dos pilares da especulação financeira globalizada, que é fonte de crises infindáveis que causam, ao mesmo tempo, empobrecimento da população e concentração absurda nas mãos de um número cada vez menor de empresários e banqueiros.

Muitos economistas criticam a balança comercial brasileira sustentada pela exportação de commodities, mas, por outro lado, esse modelo garante o pagamento da dívida. Como pensar outro modelo econômico que também garanta o pagamento?

De fato, no sistema global comandado pelo capital financeiro e pelos governos que se submetem a ele, cabe ao Brasil a outros países “em desenvolvimento” serem fornecedores das commodities que os países centrais necessitam. Por isso manter a dívida como algo inquestionável significa submeter-se a essa distribuição internacional do trabalho e da produção, mesmo se isso agrava e eterniza as relações de dependência que favorecem aos países centrais e aos oligopólios multinacionais. Por isso, a mudança de rota depende, como medida inicial, da realização de uma Auditoria soberana da dívida externa e interna, e, em seguida, da convocação de uma Constituinte Exclusiva para redefinir, pela primeira vez com real representatividade da soberania popular, como o Brasil quer organizar-se social, cultural e politicamente para que seu povo seja feliz, incluindo as prioridades e tecnologias com que deseja implementar sua economia. O desafio é este: ou os países enfrentam, com a força legítima de seus povos, o sistema absurdo e criminoso do capital financeiro globalizado, ou a humanidade irá se destruir por causa das crescentes crises sociais e ambientais.

Em 1995, o Programa de Ajuste Fiscal promoveu a renegociação das dívidas dos Estados, que passaram a ter o governo federal como credor. Muitos afirmam que isto diminui a autonomia dos Estados. Como você enxerga este fato?
Mais uma vez, só uma Auditoria das dívidas dos estados terá competência e poder para identificar a legalidade, legitimidade e moralidade delas. Pesquisas realizadas por membros da Auditoria Cidadã da Dívida revelam que a renegociação realizada pelo governo Fernando Henrique Cardoso foi ruim para os estados por três motivos: deu aval ao endividamento anterior; forçou a inclusão na dívida negociada de 100% do valor de títulos que, no mercado, valiam a metade ou menos; estabeleceu índice de inflação escorchante, inflando constantemente o endividamento. Dessa forma, é claro que a renegociação aumentou o endividamento dos estados, atrelou-os ao governo federal, diminuindo sua capacidade de desenvolver políticas e de agir com autonomia.Vale lembrar que essas amarras foram reforçadas pela Lei de Responsabilidade Fiscal.

De acordo com o Sistema Integrado de Administração Financeira (Siafi), 42% do orçamento geral da Uniãopara 2014 está comprometido com o pagamento de Juros eAmortizações da Dívida. Com uma quantia tão representativa,endividar-se é a única forma possível de exercer a governabilidade?
É o que a realidade nos presenteia: o país gasta cada vez mais para manter-se endividado, e esta política exige aumento constante da própria dívida. Por isso, trata-se de uma política insustentável e injusta, porque sacrifica quase toda a população para enriquecer uns poucos já muito ricos. Basta ter presente a origem dos lucros dos bancos, no Brasil e no mundo,para entender como funciona o sistema da dívida: eles são os detentores de praticamente todos os títulos da dívida pública, e os governos — a começar com o do Brasil — consultam seus “economistas” para definir taxas de juros e outras prioridades na gestão da chamada macroeconomia. E o resultado é esse: endividado, o Estado procura os bancos paraque emprestem “novos recursos” para manter suas políticas, prioritariamente favoráveis às grandes empresas articuladas como o capital financeiro. A “porta de saída” para o sacrifício das galinhas não pode ser definida consultando as raposas.

A relação do Brasil com o FMI foi bastante questionada na décadade 1990. De uns anos para cá, no entanto, pouco se fala do Fundo Monetário. Como você percebe a relação do país com a entidade atualmente?
Vale destacar duas coisas. Em primeiro lugar: de que valeu pagar o montante da dívida do Brasil com o FMI se, em seu lugar, o governo tomou novos empréstimos junto a bancos privados pagando taxas de juro mais altas? Em segundo lugar, para que o FMI deveria aparecer por aqui se o que mais interessa ao capital financeiro globalizado e aos países centrais faz parte das políticas do Estado brasileiro? Em outras palavras, o país livrou-se da dívida, mas manteve praticamente todas as políticas que o FMI impunha através das relações de endividamento. Talvez a única diferença seja a política de transferência de recursos públicos para os submetidos a situações de miséria —uma política de alcance emancipatório, no mínimo, discutível — e a retomada do“estado investidor” — uma política, como se sabe, que favorece e privilegia os grandes grupos econômicos de origem brasileira, visando torná-los players, competidores multinacionais.

Deseja acrescentar alguma coisa?
Apenas isso: o endividamento brasileiro tem sua origem e é mantido por decisões e políticas que não têm, como mínimo, legitimidade. Como é mantido e aumentado à custa das políticas sociais que têm a ver com a qualidade de vida de todas as pessoas e povos, o endividamento público só seria legítimo se estas pessoas e povos que constituem o Brasil tivessem sido e se fossem hoje consultadas sobre ele. É por isso que se deve afirmar: a dívida e as decisões referidas ao endividamento são questões políticas, e não “econômicas”ou técnicas, que nada teriam a ver com ética e moral; ao contrário do que afirmam os “economistas” do sistema dominante, sobre estas políticas pesam critérios éticos e morais, já que têm a ver com a vida das pessoas e com a vida do próprio planeta Terra. Na verdade,o que se faz ou deixa de fazer em relação ao endividamento tem a ver com a qualidade da democracia existente no Brasil e no mundo.

Um comentário:

  1. Brasil , país de todos kkkkkkkkk
    Bruna Castro Santa Teresa top

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