segunda-feira, 3 de novembro de 2014
Breve olhar sobre a dicção de um poeta

Paulo Melo Sousa

A linguagem nunca é inocente. Carrega consigo um coquetel molotov, sempre eficaz para espalhar a torto e a direito a sua vocação incendiária. Ampliando essa visão, cabe lembrar uma assertiva do filósofo austríaco, naturalizado britânico, Ludwig Wittgenstein, quando afirma em sua obra Tractatus Logico-Philosophicus, de 1921, que “os limites da minha linguagem denotam os limites do mundo”. Essa reflexão remete à relação entre a linguagem e o mundo, entre a linguagem e a realidade que nos cerca.

Para esse filósofo da linguagem, interessa saber até que ponto a escritura ou a fala reproduzem a experiência sensível e, a partir daí, aferir se possuem algum sentido ou não passam de absurdas elucubrações que alimentam o diletantismo. Wittgenstein diz com todas as letras que a função da linguagem é descrever a realidade, e afirma que nada pode existir fora dela. Afirmação temerária, e que confere à linguagem o status do Criador. É possível compreender a realidade sem a linguagem, embora o conhecimento da realidade possa ser alcançado pela análise da linguagem, e isso é irrefutável.

Dessa forma, ao nos debruçarmos sobre os textos contidos nesta Ode Triste para Amores Inacabados, de Fernando Atallaia, de imediato nos aflora à mente as ideias de Wittgenstein. Muito se falou sobre a crise da palavra, iniciada no final do século XIX com obras seminais, tais como Un Coup de Dés, de Stéphane Mallarmé. As lutas quase corporais travadas no domínio da linguagem procuraram livrar do escritor as amarras de um discurso formal, castiço e linear. Desse embate surgiu um amplo caminho de liberdade no uso da palavra, a poesia a tiracolo.

Essa liberdade já produziu, por sua vez, equívocos evidentes. Muitos, querendo parecer modernos, não passam de reprodutores da mesmice. Uma das vertentes literárias que se impôs, ao longo do último século, brotou a partir das mudanças na arte da palavra, a prosa poética. E notamos que essa possibilidade de expressão, para não ficarmos limitados à palavra gênero que, em literatura, já não delimita um território estético, cresceu e se expandiu, contaminando positivamente a poesia, ampliando seus limites. Essa reflexão me percorre quando leio os textos de Atallaia.

Notamos facilmente a presença de um discurso no qual a prosa poética se faz presente, e isso já delimita o mundo desse escritor que apresenta aos leitores seu primeiro livro. Ele envereda pela metalinguagem no poema Dependências. Delimita, contudo, a linguagem, quando afirma que a poesia tem seu limite, uma dependência, um lugar. Se existe um lugar, ele pode ser localizado, batizado com carteira de identidade.

Aqui brota uma contradição, pois o poeta afirma no próprio poema que a poesia é “Porta de mundo para muitos universos / Entradas de setas para o inesperado”. Aqui a poesia, embora possua uma dependência, abre-se para o inominável. A dicção do poeta se pretende aberta, eis o mundo de Atallaia, uma dependência que não se fecha em si mesma, e que, portanto, abre-se para divagações. Uma linguagem que revela um mundo contraditório, que escapa das dependências através das janelas que o inesperado da poesia é capaz de gerar.

Por outro lado, estreitando os limites entre o erótico e o pornográfico, o poeta derrama versos raivosos, tensos, apimentados, muitos  deles mais próximos da prosa que da poesia, embora esses limites também possam ser questionados. Atallaia busca sair da mesmice, do poema pronto, do previsível. É uma busca! A linguagem, contudo, ainda o delimita e revela a sua realidade, carnal, concreta, humana, visceral, mundana, fruto de vivências que o autor denuncia ao datar seus poemas e a indicar os seus locais de procriação, rastreados em São Luís do Maranhão, São José de Ribamar ou em qualquer outro local perfeitamente localizável.

No entanto, ele se abre num leque de interpretações outras quando deixa fluir a imaginação, e aqui ele entra no universo poético de forma mais consistente, quando revela, nas entrelinhas de seus textos, um universo particular, orgástico, que habita o reino da intuição, sem a qual não existe poesia. Notamos isso, por exemplo, no verso “o jardineiro do roçar da imaginação a tocar como um cão a ferida a ser lambida”. E assim ele consegue, em alguns momentos iluminados como nesse verso, romper com a realidade e ampliar os limites da linguagem presentes no conceito filosoficamente elementar de Wittgenstein, a realidade poética extrapolando a realidade do cotidiano, a imaginação, a intuição a falar mais alto. Desse alimento, espero, Fernando Atallaia poderá extrair argamassa necessária para construir uma obra poética estimulante, plena de desafios de interpretação e, de forma imprescindível, duradoura.


Paulo Melo Sousa é poeta, jornalista, escritor, designer, pesquisador de cultura popular, ambientalista, membro fundador da Sociedade de Astronomia do Maranhão e da Academia Ludovicense de Letras. Mestre em Ciências Sociais, detentor da Medalha do Mérito Timbira, grau de Comendador do 4º Centenário de São Luís, pelos relevantes serviços prestados à cultura maranhense. É ainda presidente da Sociedade de Cultura Latina do Estado do Maranhão. Autor de sete livros, quatro deles de poesia, todos premiados, dentre os quais Vi (s) agemBanzeiro e Vespeiro. Integra a antologia A Poesia Maranhense do Século XX, organizada por Assis Brasil.

Um dos criadores, em 1985, do grupo Poeme-se, que cria também um sebo e locadora de livros. Ganhador duas vezes do Festival Maranhense de Poesia Falada, em 1985 e 1987.

2 comentários:

  1. A poesia de Fernando Atalaia é muito rica e difícil de analisar, muito metafórica e cheia de significados, este poeta é um dos maiores da década de 90 para cá, parabéns ao poeta e Paulo teve uma ótima interpretação, viva poesia do Maranhão! Viva!!!!
    Marcio Viana, estudante universitário-UFMA

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  2. Atalaia é fruto da noite e de uma época onde a poesia era a razão maior de se viver nessa ilha, o cara é foda. Chagas Junior, valeu cara , respeito

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